O Brasil, a genética e a eugenia: a aquiropodia como um estudo de caso

Recentemente alguém me disse que veio ler alguns  artigos do meu blog porém achou que os conteúdos eram muito específicos para quem atua na genética. Eu não posso negar que a maior parte dos posts realmente tem um apelo mais específico e por isso decidi escrever algo um pouco diferente do conteúdo que estava sendo habitual (Mas eu também posso dizer que já escrevi alguns posts diferentes, como esse ou esse)

O fato é que eu estava conversando com a professora Ida, que me falou sobre a aquiropodia como uma condição genética conhecida que teria sido descrita inicialmente por um brasileiro. Após algumas pesquisas, o resultado foi no mínimo inesperado: 

A menção mais antiga à aquiropodia pareceu chegar a um pequeno editorial publicado em uma revista chamada de Eugenical News, publicada pela American Eugenics association neste período. Essa mesma revista já foi publicada pelo instituto Carnegie de Washington (hoje mais conhecido como Carnegie Sciences) que se desvinculou completamente da publicação a partir de 1938.

A ruptura ocorreu em um período conturbado da história humana. O nazismo estava em plena força na Europa, já em um processo de expansão que daria início à segunda guerra mundial pouco depois (a anexação da Áustria e dos Sudetos, então parte da Tchecoslovaquia ocorreram em 1938). Era cada vez mais aparente que a eugenia servia como uma espécie de validação com aspecto de ciência de uma política que levaria ao extermínio de milhões. 

Após o fim do suporte do instituto Carnegie, a revista passou a ser publicada pela citada sociedade americana de eugenia, e posteriormente passou a ser publicada de forma quadrimestral. Em 1969 o periódico foi renomeado como "Biologia Social", devido à conotação negativa que já estava associada ao termo "Eugenia".

No fim das contas, realmente houve uma publicação assinada como editorial no volume 14, parte 3, publicado em 1929, entre as páginas 46 e 47 (o que pode ser acessado aqui). Trata-se de um relato de uma família onde havia a ausência hereditária das mãos e dos pés. Uma fotografia trazia a mãe (não afetada), um bebê (acometido), seu irmão (acometido), outro irmão (acometido) e um tio paterno dos três (acometido). O pai já seria falecido e o fenótipo foi relacionado com a família paterna:



O artigo traz ainda outras três famílias não relacionadas, todas aparentemente dos EUA (ver errata), com ausência congênita das mãos (aquiria) ou das mãos e dos pés (aquiropodia). Comenta ainda que é significativo que há desenvolvimento anormal dos músculos das pernas, porém com ossos longos aparentemente bem desenvolvidos. 

É curioso pensar como a foto desta família foi realizada e acabou chamando a atenção de pessoas nos EUA que nunca tiveram contato com qualquer um dos indivíduos registrados. O fotógrafo (ou quem enviou a foto) foi nomeado como o Sr. Wesley Peacock, de Atlanta, Georgia.

Infelizmente, não consegui descobrir mais a respeito do fotógrafo, que inclusive aparece em citações posteriores sobre a aquiropodia, até mesmo com uma referência sua no Google Scholar, recebendo assim crédito como autor deste pequeno relato que foi citado algumas vezes, incluindo em um artigo de 1975 publicado no American Journal of Human Genetics, da autoria de Ademar Freire-Maia e seu irmão: Newton Freire-Maia, além de outros colaboradores: Newton E Morton, Eliane S Azevêdo e Antônio Quelce-Salgado.

O artigo com título de "Genetics of Acheiropodia (the Handless and Footless Families of Brazil). VI. Formal Genetic Analysis" é uma continuação do trabalho dos autores, que data pelo menos de 1958, quando a aquiropodia foi descrita no X congresso internacional de genética. Outro trabalho dos mesmos autores foi apresentado na primeira reunião brasileira de genética humana, em Curitiba, no ano de 1959. 

O trabalho publicado em 1975 compilou informações de pelo menos 22 irmandades em seis estados do Brasil. Há a menção de que a análise "roentgenológica" (radiográfica) já havia sido realizada por outros autores, além de que não foram encontradas anomalias cromossômicas e que os padrões de dermatóglifos não revelaram informações relevantes (o que me leva a pensar que foram analisados dermatóglifos de familiares não acometidos, talvez?).

A análise de segregação contou com a ajuda de um computador que ocupava boa parte de uma sala (CDC 3100, com preço de lançamento de 120 mil dólares e incríveis 571kHz de processamento, além de 96kb de memória) utilizando um programa escrito em FORTRAN (linguagem de programação muito utilizada no meio científico). A frequência de segregação do fenótipo nas famílias acometidas foi de 0.245 +/- 0.04, o que é próximo do valor esperado de 0.25 para a segregação de uma característica autossômica recessiva. 

O artigo tentou ainda estimar a probabilidade de que os probandos fossem avaliados, além da probabilidade de casos esporádicos dentre todos os casos avaliados. Assim, chegaram numa prevalência estimada de 29 indivíduos com aquiropodia na população estudada, dos quais 22 foram descobertos.

A imagem acima traz heredogramas de famílias estudadas pelos autores, com uma história familiar meticulosamente obtida. Esta é uma habilidade que deve ser estimulada entre geneticistas em formação hoje (isso é um assunto diverso, mas me preocupa que o heredograma seja negligenciado por geneticistas formados ou em formação). 

Também é interessante notar que os heredogramas de fato são sugestivos de uma herança autossômica recessiva, e que temos também algumas famílias com consanguinidade: Entre primos de segundo grau na primeira imagem (em inglês se utilizaria o termo first degree cousin once removed, porém essa diferenciação não é habitual no português – uma pequena mostra de como a cultura influência na interpretação do parentesco) e entre primos de primeiro grau na terceira família. 

O estudo publicado em 1975 por Freire-Maia et al é interessante, especialmente para quem gosta de saber mais sobre a história da genética clínica e seus métodos de investigação, e pode ser lido aqui.

Mas também devemos falar sobre o elefante na sala. Sim, onde ocorreu a primeira publicação sobre aquiropodia. Um periódico voltado para a Eugenia. A verdade é que os próprios eugenistas não sabiam dar uma definição precisa de sua "ciência".  Porém, no mesmo volume em que foi publicada a fotografia acima, há uma explicação a respeito. O termo foi cunhado por Francis Galton com a ideia de "melhorar a qualidade de futuras gerações humanas". 

Os editores trazem, porém, uma definição confusa com base em uma dimensão biológica da eugenia (que incluiria aspectos genéticos, bioquímicos, embriológicos etc) e em uma dimensão social (que inclui sociologia e economia). No fim das contas, é inexorável que se trata de uma tentativa de "melhoramento" da espécie humana. Aliás, nas próprias palavras dos autores: "The test of validity for all social principles is their ultimate influence upon human survival" (O teste de validade para qualquer princípio social é a sua influência final na sobrevivência humana).

Ainda neste volume, existem respostas a críticas realizadas por um antropólogo, que argumentou que a eugenia ignora totalmente os fatores ambientais no desenvolvimento humano, e que teriam, provavelmente, impedido que os pais de Beethoven tivessem filhos. A resposta envolve a ideia de que "não há nada que pude encontrar contra Beethoven pai, apenas que ele tinha um temperamento violento e que bebia mais que devia", além de uma queixa de que não é justo culpar todos os eugenistas pelos posicionamentos extremos de alguns. 

Acredito que ainda irei explorar melhor o que for possível encontrar de interessante nestas publicações, porém me chama atenção a intersecção entre estudos de malformações congênitas e eugenia que pareciam coexistir no início do século 20. Talvez isso denote um pensamento que era comum na época e que parecia trazer exemplos para a necessidade que os proponentes da eugenia argumentavam para o "melhoramento" da espécie"? 

De toda maneira, há repercussões que podem ser interessantes ainda hoje em dia quando levamos em conta o aconselhamento genético que realizamos no nosso dia-a-dia. É importante lembrar que o aconselhamento genético é não diretivo, e que a ideia de promover decisões específicas tem intersecções com as ideias representadas nos periódicos de eugenia. 

Tentarei trazer mais conteúdo relacionado com aspectos históricos da genética e com questões bioéticas envolvendo a especialidade, com especial interesse para o aconselhamento genético e suas implicações para os aconselhados. Até lá, fiquem bem.

Errata: Inicialmente havia mencionado que na publicação original, de 1929, todos os três outros casos mencionados seriam dos EUA. Na verdade, o terceiro caso, foi registrado na Inglaterra. 

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