A conexão excessiva e o sentimento de sobrecarga

Estes dias percebi uma coisa curiosa: eu tenho passado mais tempo assistindo outras pessoas fazerem coisas no YouTube do que fazendo as eu mesmo. Assistir pessoas jogando videogame é um exemplo. Essa foi uma percepção que me deixou um pouco consternado, mas parece ser apenas um sintoma de algo maior. Algo que imagino que não sou só eu que vivencio. 

O nosso conhecimento e a tecnologia que conseguimos produzir parecem avançar em uma taxa progressivamente maior à medida que percorremos a história da humanidade. Se voltarmos para a antiguidade clássica, pode-se observar, por exemplo, que vários séculos separam o surgimento da primeira forma de escrita cuneiforme para os A’s e Z’s que usamos hoje.

É provável que um escriba da babilônia antiga, enquanto talhava suas cunhas em tábuas de argila, acharia a forma como escrevemos em meio virtual algo incompreensível. (A verdade é que boa parte de nós também achamos, afinal, qualquer tecnologia suficientemente avançada se torna indistinguível da magia, porém isso é assunto para outra reflexão). E no breve tempo que estou nesta terra já pude acompanhar como saímos de pesados monitores de tubo para celulares que tem poder de processamento muitas vezes maiores que os computadores que comecei a usar por curiosidade na minha infância.

Geralmente aqueles textos sobre curiosidades em relação à linha do tempo da humanidade trazem algumas informações desse tipo. Sobre como a Cleopatra está mais perto de nós do que da construção das pirâmides do Egito. Ou como os mamutes ainda existiam durante a construção das pirâmides.

Talvez eu possa acrescentar que as primeiras prensas móveis surgiram na China bastante antes da sua introdução na Europa por Gutenberg: Bi Sheng (毕昇, Bì Shēng) inventou uma prensa móvel em 1040 EC e esta é considerada umas quatro grandes invenções da china antiga (as outras são a fabricação de papel, a bússola e a pólvora). A prensa móvel de Gutenberg surgiu por volta de 1450 em Mainz. Os primeiro jornais impressos iria surgir somente por volta de 1605, na Alemanha. Aliás, a inovação de Gutenberg recebeu reconhecimento mais póstumo que durante sua vida. O retrato conhecido do alemão como um homem barbudo (imagem 1) e com vestimentas que remetiam a burgueses membros de guildas é uma reconstrução imaginária do inventor. Não há retratos feitos durante sua vida existentes.

Imagem 1: Gutenberg em retrato póstumo em gravura do século 17 (domínio público)

Curiosamente, algumas pessoas que não imaginamos têm retratos fotográficos (ou com tecnologias predecessoras da fotografia, como o daguerreótipo) que chegaram aos dias atuais. É o caso de Arthur Wellesley, o duque de Wellington (imagem 2, abaixo). Sim, o mesmo que lutou contra Napoleão Bonaparte (que tem apenas retratos pintados). Ou de um ferreiro americano demonstrando seu ofício, fotografado (ou daguerreotipado?) em 1859 ou 1860 (Imagem 3, abaixo).

Imagem 2: O duque de Wellington em daguerreótipo de 1844 por Antoine Claudet (domínio público)

Imagem 3: um ferreiro em daguerreótipo datado entre 1859-1860 por Summer A. Smith (domínio público)

Porém pode ser um pouco mais assustador pensar que enquanto a internet foi inventada por volta de 1969, o telefone celular ficou disponível aos consumidores em 1983, enquanto os primeiros celulares que utilizam tecnologia 3G surgiram em 2001 e o 4G começou a ficar disponível a partir da década de 2010. Hoje em dia vemos a transição para o 5G (o que já gerou conflitos significativos, mas isso é assunto para outro momento).

Enquanto o mundo ao nosso redor muda em uma velocidade assustadora, nós somos mais parecidos com aquele escriba da babilônia antiga (exceto, é claro, na habilidade de interpretar tábuas cuneiformes) do que um iPhone se assemelha ao Apple II, o primeiro computador de grande sucesso da empresa que escolheu uma maçã mordida como seu símbolo.

Nossos cérebros não são tão diferentes do que possuíam nossos antepassados de pouco mais de dois milênios atrás. Na verdade, pensando na linha do tempo evolutiva, esse intervalo pode ser equivalente a alguns minutos na evolução da nossa espécie. Por exemplo: nosso cérebro dispõe de regiões específicas associadas à fala, mas não podemos dizer o mesmo em relação à escrita.

A temporalidade da evolução biológica é geralmente bem mais vagarosa que a tecnológica. Porém a seleção por pressões artificias também pode acelerar o tempo evolutivo. Um exemplo que causa grande preocupação hoje em dia é o surgimento de novas cepas de bactérias cada vez mais resistentes a diferentes antibióticos. Quando a penicilina surgiu, é provável que a maior parte dos Staphylococcus Aureus fossem suscetíveis a ela. Hoje em dia prescrever penicilina cristalina para uma infecção por S. Aureus não seria nem um pouco auspicioso, afinal de contas, não existe ambulatório de sepse.

De toda forma, é fascinante pensar o quanto nosso cérebro é adaptável e plástico. Mesmo que não tenhamos tido tempo de adquirir uma região específica para isso, todas a interconexão entre diferentes circuitos envolvidos nos nossos pensamento, nossa memória, linguagem, percepção e movimentos permitem aquilo que definiu o marco entre pré-história e história: a linguagem escrita.

Entretanto, parece que algumas coisas acontecem em uma velocidade maior do que nossa capacidade de adaptação permite acompanhar. O excesso de estímulos e de conexão do mundo moderno é um exemplo. Em pouco tempo, passamos a lidar com o estado de estar cronicamente online e com a noção de que precisamos estar disponíveis o tempo todo para responder novas mensagens e notificações. Vemos linhas do tempo que sempre trazem algo novo e que pode parecer potencialmente mais interessante que o vídeo curto anterior.

Isso moldou a comunicação e as relações humanas de uma forma rápida. Talvez o impacto maior seja nas crianças que crescem neste ambiente e que nunca conheceram outra realidade. Ver nos ambulatórios pacientes de menos de 6 anos que só se acalmam quando estão com um celular nas mãos é assustador. O impacto da tecnologia a um cérebro em desenvolvimento ainda está sendo estudado. Embora saibamos que a exposição à tecnologia não causa autismo, apesar de algumas vezes essa informação falsa ser disseminada (é bom lembrar que o autismo depende de uma organização neural diferente para acontecer, algo que geralmente já ocorreu devido ao programa genético que foi seguido durante o desenvolvimento ou por fatores disruptores que afetaram esse processo), parece sim ser associado a um prejuízo na aquisição da linguagem e da socialização com outras crianças.

Essa é a primeira geração de crianças que está crescendo com este nível de conexão. Ainda iremos acompanhar o desenrolar dessa situação enquanto tentamos intervir antes de saber todos os impactos. Porém percebemos também os efeitos do excesso de informações em nós, adultos. Pessoas que se dizem viciadas em redes sociais, ou que relatam prejuízos à autoestima, ou ansiedade associada com o uso desses aplicativos, por exemplo.

E parece que as redes sociais também perceberam isso e conseguem explorar bem essa dificuldade do nosso cérebro de lidar com o excesso de estímulos. Essas mídias têm mudado de locais onde o foco principal era a socialização e manter uma rede de contatos e compartilhamento de experiências, para sites onde se pretende reagir a publicações de diversos produtores de conteúdo. Este conteúdo, aliás, antigamente era composto majoritariamente por fotos com filtros bregas e hoje em dia se baseia muito em vídeos curtos.

E onde ficamos nisso tudo? Acho que aqui eu deixarei a reflexão para quem também já se sentiu reflexivo com este mundo e que já experimentou sensações de sobrecarga de estímulos, comparações excessivas e ansiedade com a utilização da tecnologia. É lamentável, mas eu não tenho a resposta. Acredito que ninguém tem uma resposta definitiva. Mas posso dizer que estou tentando traçar melhor meus limites em relação à conexão excessiva da sociedade digital.

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