O que é um crisol?
Meio aleatório, mas eu estava refletindo alguns dias atrás sobre o significado da palavra "Crisol". Geralmente seria a tradução mais apropriada do termo em língua inglesa Crucible. Ok, vamos à definição do dicionário das duas expressões (Ambas retiradas do Wiktionary, pois eu apoio os projetos de conhecimento livre):
Crucible (tradução minha):
1 - (Química): Um equipamento de laboratório em formato de copo usado para conter compostos químicos que serão aquecidos a temperaturas muito elevadas.
2 - Um container resistente ao calor em que metais são fundidos, geralmente a temperaturas acima de 500ºC, muitas vezes fabricado em grafite, utilizando argila como liga.
3 - A parte inferior e mais quente de uma fornalha
4 - (Figurativo) Uma experiência muito difícil e desafiadora, que age como processo endurecedor para quem por ela passa
Em português:
Crisol:
1 - Equipamento de laboratório em formato de copo
2 - Container resistente ao calor onde metais são fundidos
Me parece que em português o último sentido da palavra é perdido. E talvez a sonoridade também não seja tão impactante. A etimologia é do latim: Crucibulum - provavelmente de uma espécie de lâmpada a óleo utilizada na antiguidade, e posteriormente aplicado para o recipiente utilizado na fundição. Existem questionamentos se isso seria relacionado ao verbo crucio (atormentar), que por si vem do vocábulo crux (cruz), por motivos que são bem aparentes.
Mas por que tanta reflexão sobre a palavra crucible/crisol? A verdade é que estes pensamentos se originaram da observação que algumas obras de ficção gostam de utilizar essa palavra para designar artefatos importantes. Em Elden Ring, por exemplo, é mencionado (e parece ser algo bastante relevante) o crisol da vida primordial. Estes dias eu também estava vendo o novo reboot da franquia Doom (de 2016) e há uma menção do crisol como um artefato que seria capaz de conter as energias do inferno. Em alguma das temporadas da série nova de Doctor Who, o Crucible era uma ultra espaçonave dos Daleks com algum tipo de arma capaz de destruição em massa.
Há uma peça teatral escrita por Arthur Miller em 1953 chamada de The Crucible (As Bruxas de Salem). A tradução do título já deixa aparente o tema da peça: O julgamento das bruxas de Salem. Na verdade essa foi escrita de forma metafórica com o que acontecia nos Estados Unidos na mesma época: O Macarthismo e a perseguição de daqueles acusados de serem comunistas.
A época do Macarthismo foi um período marcado por um pânico em relação a uma possível influência soviética na sociedade norte-americana e a disseminação do comunismo. No clima da guerra fria, após a ruptura da aliança com os soviéticos, o presidente Truman assinou uma ordem executiva que exigira a investigação da lealdade de qualquer pessoa que estivesse entrando no serviço público federal, especificamente mencionando ideologias consideradas fascistas, comunistas ou subversivas.
Essas tensões trouxeram um terreno fértil em que o senador Joseph McCarthy se colocou como um bastião moral no combate a estes elementos indesejáveis da sociedade, inclusive com uma lista de membros do partido comunista dos EUA que estariam infiltrados no departamento de estado norte-americano. Assim, várias instituições governamentais criaram comitês para rever a lealdade de seus empregados, e companhias privadas também se preocupavam na possibilidade de que tivessem comunistas infiltrados entre seus trabalhadores.
Um dos afetados pelo Macarthismo foi o famoso diretor científico do projeto Manhattan (e competidor involuntário com a Barbie após mais de 5 décadas de sua morte) Oppenheimer. Em 1954, trabalhando na comissão de energia atômica dos Estados Unidos, uma investigação foi iniciada sobre sua vida pregressa e sobre a decisão de manter ou não a autorização de segurança para que continuasse a trabalhar com o governo dos EUA. A decisão final foi negativa para o cientista e isso marcou o fim de seu trabalho com o governo.
Outras personalidades famosas se beneficiaram mais do clima tenso da época (mais inclusive que o próprio McCarthy). John Edgar Hoover, por exemplo, aproveitou para que o FBI, sob sua direção, fosse utilizado para verificar a lealdade de funcionários públicos. Os métodos de investigação eram questionáveis e, em geral, quem era acusado não tinha a oportunidade de confrontar seu acusador.
O senador McCarthy em si dirigiu um subcomitê do senado de investigação entre 1953 e 1954, quando utilizou esses poderes para as suas investigações no envolvimento de comunistas nos EUA. Isso culminou na investigação do exército pelo subcomitê de McCarthy, quando acusações foram feitas de ambos os lados em uma audiência televisionada que durou ao todo 36 dias. Houve uma queda na popularidade de McCarthy e algum tempo depois ele foi oficialmente censurado pelo senado e passou a ser evitado tanto pela mídia quanto pelos colegas.
Mas onde eu estava? Essa história me fez refletir um pouco sobre os tempos atuais. De qualquer maneira, o uso do termo Crucible no título da peça de Arthur Miller parece se referir mais ao sentido de experiência difícil e desafiadora. E talvez por isso o título teve que ser traduzido de uma maneira mais explicativa.
Em Elden Ring, o crisol da vida primordial tem temas que me remetem às ideias de Empédocles, que foi um pré-socrático e postulou que o mundo era composto de quatro elementos. Agora rápido. Se você estivesse em uma estranha prova de filosofia e tivesse que mencionar quais são estes elementos, o que responderia? Sim, são aqueles já conhecidos: Água, fogo, terra e ar. Seriam as raízes, como ele chamava (ῥιζώματα - Rizomata):
Escuta, em primeiro lugar, as quatro raízes de todas as coisas:
Zeus resplandecente, Hera doadora da vida, Edoneu e Nestis, que com suas lágrimas inunda as fontes dos mortais
"(...)Pois certa vez cresceu o um, sozinho entre muitos. Outra vez, separou-se de modo que haviam muitos a partir do um. Fogo e água e terra e vastidões de ar. Com o nefasto conflito separado deles, balanceando cada um, e o amor entre eles, seu igual em tamanho. "
É neste momento que temos os quatro elementos no texto fragmentar de Empédocles: πῦρ καὶ ὕδωρ καὶ γαῖα καὶ αἰθέρος. Os elementos se balanceavam através de espécies de forças: amor e conflito, ou atração e repulsão. Ora formavam um, ora formavam muitos. E é neste momento que eu finalmente chego ao ponto que queria chegar. Para explicar as primeiras formas de vida, Empédocles recorre à mistura "ao acaso" entre os elementos, que formavam figuras que nem sempre conseguiam sobreviver: pernas com um torso feito de pernas, braços combinados com pernas somente, corpos com duas cabeças, corpos humanos combinados com cabeças bovinas. Braços sem ombros, pernas sem joelhos. E seres com dois sexos em um. Com o tempo, as figuras que conhecemos persistiram, e em algum momento houve a separação entre os seres de dois sexos para formar os seres que eram observados na época.
O Crisol da vida primordial no Elden Ring tem pontos parecidos com esse. É mencionado em fragmentos de textos que tinha alguma relação primordial com a vida, e em épocas os ancestrais, brotavam mistos de diversas partes animais nos seres vivos, especialmente em gigantes: chifres, penas, escamas, presas e garras. Para algumas culturas, o brotamento era sagrado, especialmente dos chifres. A ideia de mistura da vida parece significar que crisol deve ser interpretado como um recipiente onde isso pode acontecer. Posteriormente, esse recipiente teria dado origem à Térvore(Erdtree).
Essa reflexão ficou mais longa do que eu esperava, mas foi interessante. Durante a pesquisa, eu encontrei uma tese de doutorado que achei bastante interessante sobre as raízes na cosmologia de Empédocles, a qual pretendo olhar com mais atenção. A tese é da autoria de Ivanete Pereira e está disponível neste link.
Fiquem bem.
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