Refletindo sobre a culpa

 Este texto foi datado de maio de 2023 e eu vou publicá-lo com apenas algumas pequenas alterações e correções. Acreditem, ele está melhor do que na versão de rascunho do meu computador.


Culpa

Um dia desses ouvi alguém dizer que a culpa dói. Muitas vezes escutei pessoas dizerem variante da frase "O melhor travesseiro é uma consciência tranquila”; ”Como você consegue deitar à noite e dormir?”; "Pelo menos eu estou com a minha mente tranquila de que sempre agi certo.”

Os pensamentos parecem rodopiar de forma desenfreada. As lembranças se tornam nubladas e se misturam entre si, como as tintas guaches que usávamos na infância, molhando o pincel em um copo de água transparente. As cores aos poucos se unem em um liquido de coloração questionável. Tudo se mistura na nossa mente. Os pensamentos fluem nas águas da mente e as partículas se entrelaçam. Seus tons se misturam como faziam no passado. Em cima do jornal. Pinceladas ao acaso. Um pequeno dadaísta de apenas 5 anos de idade.

Às vezes nem se lembra mais o que causou a culpa. Mas ela está presente, ali, em vários momentos do dia. Às vezes, parece até que algumas emoções já se tornaram figuras repetidas no plano de fundo da vida. Às vezes esperando para roubar o protagonismo para si. Ou talvez queiram somente dividir o palco. Afinal: o que seriam dos meus pensamentos se não tivessem a mim?

Eu os criei, e é assim que me tratam. Ou devo dizer que eu estou me tratando desta forma? Afinal, os pensamentos são meus. Sejam os de culpa, ansiedade, alegria, raiva ou tristeza. Os pensamentos são nossos, e apenas nossos.

Dentre todos os padrões em que os neurônios podem se relacionar em seus sinais elétricos, a culpa parece ser um dos mais pesados. O peso, mesmo que metafórico, quase se sente fisicamente. Está ali, oprimindo o tórax. Uma angústia. Um aperto.

Sentir culpa, até certo ponto, deve ser saudável. O ser humano que não sente culpa pode ser capaz de atrocidades que chocariam a humanidade. Existem freios que agem sobre a nossa volição. O sentimento de peso da culpa está diretamente ligado àquilo que temos como válido em nossa visão ética interna. Muitos filósofos já se dedicaram ao tema — desde antes de Sócrates despertar o desprezo de atenienses, abordados em suas atividades matinais na pólis, lhes perguntando: “O que é o bem?”

Quando ocorre uma dissonância entre nossas ações e aquilo que temos como o bem, ela surge. Não agi da forma que acreditava que deveria ter agido. Fui maldoso, violei regras da minha moral interna. Eis que minha mente me flagela com o peso dessa noção. Agi em desacordo com o que acredito ser certo. Situações alternativas se desenrolam em nossa mente, se misturando às águas já com cor de burro quando foge. E outra peculiaridade do mundo e nos aperta ainda mais o peito: o tempo só corre em um único sentido. Não há volta.

Na vida não há rascunho. Não existe passar a limpo e não há ensaios. Cada instante que vivemos é definitivo. Está ali, guardado na eternidade, ao mesmo tempo em que já se tornou passado, e talvez não está guardado coisa nenhuma. Um instante pode ser muito leve, quando passa sem que isso seja algo percebido. E também pode ser muito pesado.

Existe um paradoxo proposto na filosofia da Grécia Antiga: quantos grãos de areia são necessários para formar um monte de areia? Ora, um grão de areia não representa um monte, porém, em algum momento, a resposta há de mudar. Se 60 grãos de areia são um monte, então o que separa 59 grãos, que não o são, de 60 é apenas um único grão.

Da mesma forma - um instante forma realmente uma memória? O que é um único instante? Talvez seja o conceito mais efêmero que conseguimos pensar. A menor unidade de tempo existente, quase que indefinível para nossa percepção. Quantos instantes são necessários para formar algo coerente em nossas mentes? Estas perguntas talvez não têm resposta racional. Pode ser que tenhamos que nos contentar com o que os adultos diriam quando éramos crianças — porque é assim.

Questões sobre contínuos à parte, as memórias são sabidamente distorcidas pela culpa. Não sei de qual matéria elas são feitas, porém é algo maleável pela proximidade desse sentimento, que as torna mais intensas, vívidas, e enviesadas. Um pequeno instante (ou seria um conjunto deles?) se repete inúmeras vezes em nossa mente.

Isso remete a um conceito que tornaria todos os instantes mais pesados: o eterno retorno. A ideia de que tudo que fazemos agora irá se desenrolar infinitamente conforme o tempo flui infindável. Aliás, não estaríamos já apenas repetindo o que aconteceu em algum instante mestre e inicial, que existiu em uma era imemorável? Nesse caso, não temos então uma escolha de como agir? Apenas seguimos, como marionetes guiadas por um titereiro — um incansável titereiro — que não se importa de fazer a mesma coisa para todo o sempre?

Milan Kundera refletiu que o eterno retorno faz com que todos os instantes que vivemos tenham um peso insustentável. Não há como agir com leveza quando se sabe que isso ecoará pela eternidade. Porém, talvez ele não se ateve a outra ideia correlata: como podemos saber se estamos vivendo realmente pela primeira vez? Não estaríamos já em uma das infinitas repetições? Nem sequer uma das mais tardias, mas no meio delas.

Se tudo já ocorreu em algum momento do passado remoto - temos realmente culpa de algo? Afinal, se tudo se repete, estamos presos a um ciclo de causalidade determinístico em que os cálculos necessários já foram realizados. Alguém derrubou o primeiro dominó e os outros seguem caindo. Por que deveríamos nos sentir culpados se nossas ações foram determinadas em algum momento do passado imemorável? Talvez porque a culpa seja também um sentimento que já foi predefinido?

Parece que entramos em um ciclo sem fim, como a questão do ovo e da galinha. Não existe como determinar um instante fundamental, onde todo se iniciou. Sabemos apenas aquilo que estamos presenciando. Sequer podemos ter certeza do que está na nossa memória.

E ao mesmo tempo, nossa mente parece ter um poder fantástico a partir dela, a memória: parece ser o único lugar de nossa consciência onde o fluxo do tempo não corre em apenas um sentido. Podemos escolher avançar e retroceder, ora lentamente, ora rapidamente. Mas não seria cada retroceder e avançar menos fiel à realidade que a versão anterior?

A culpa sem função corrói. Penetra nos pequenos espaços da mente e causa danos aos poucos. Uma espécie de flagelo que utilizamos para nos punir porque nossa forma de encarar o mundo muitas vezes não aceita ser flexível. É um ser ou não ser, porém bastante diferente do que Shakespeare pode ter pensado quando eternizou seu aforismo.

Nenhum sentimento é inútil. A culpa também não o é. E ao mesmo tempo, é tão única para cada pessoa. Cada um sente culpa ou não a partir do seu sistema de valores, internalizado no âmago do eu, moldado ao longo de anos formativos do nosso ser.

Às vezes nos questionamos como alguns exemplares vis da espécie humana puderam agir como agiram. Não sentiam nenhuma culpa? Ora, a culpa é dependente do nosso sistema interno de certo e errado. Quando acreditamos que o que estamos fazendo é o certo, afastamos a culpa da nossa mente.

Até pouco, a culpa parecia ser mais útil. Essa relativização dela pode ser um pouco desconfortante. E é. Pensar que alguém pode matar seus semelhantes sem demonstrar qualquer sentimento de culpa suscita uma sensação de descrença na humanidade e no ser humano. Então, talvez mais importante que a culpa é o sistema de valores que existe no âmago de cada um?

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