O aumento na incidência do autismo e correlações espúrias

 Hoje eu estava em uma rede social que começa e termina com X (o antigo Twitter, é o epíteto mais comum) e vi algumas pessoas tentando fazer uma correlação espúria entre o aumento do número de vacinais disponíveis no mercado e o aumento dos casos de autismo:



O gráfico ainda conta com um cálculo estatístico de correlação para tentar trazer uma aparência de maior legitimidade! Curiosamente alguém perguntou na mesma publicação qual seria a incidência de autismo em 1920. A resposta: Nada. De alguma forma isso também teria algum significado oculto que a indústria das vacinas não quer que você saiba.

Talvez seja interessante notar que a definição de autismo como diagnóstico teve uma história bastante prolongada. O termo autismo foi cunhado em 1912 pelo psiquiatra suíço Paul Bleuler como autismus. A origem era do grego: Auto + Ismo - a ideia é de comportamento autocentrado. Antes disso, algumas descrições de demência precoce, infantil ou precocíssima poderiam ser relacionadas ao que hoje em dia se consideraria como autismo.

A demência precoce acabou sendo associada à esquizofrenia (schizo + phrenia - mente dividida), embora mais relacionada com sintomas negativos, e o autismo também o foi, com a ideia de reclusão da pessoa em si, com suas próprias fantasias e pensamentos. Eugen Bleuler acreditava que estas pessoas se retraíam em si e não conseguiam formar uma organização mental semelhante aos outros indivíduos por permanecerem em um estado mental mais infantil. 

A associação com as pessoas esquizoides também não demorou para ser feita, ainda na década de 1920. Esquizoide por ter sintomas semelhantes à esquizofrenia, porém em menor grau. Jung, que já trabalhou sob supervisão de Bleuler previamente, usou o termo introversão desde 1909, e descreveu em 1921 uma personalidade introvertida.

A primeira pessoa a trazer uma descrição mais parecida com a atual foi a psiquiatra soviética Grunya Sukhareva, como psicopatia esquizoide da infância. Posteriormente,  Leo Kanner acabou por predominar na pesquisa incipiente do autismo, com a publicação de séries de casos em 1943 e em 1944, sendo este último artigo entitulado de "Autismo infantil precoce". 

O primeiro caso diagnosticado por Kanner como autismo, aliás, foi em Donald Gray Triplett, uma criança que quando vista por Kanner preferia livros e papéis a pessoas, era capaz de memorizar as notas musicais do piano, conseguia realizar multiplicações mentais com facilidade, evitava o contato visual, e em geral não se interessava por relações sociais. Triplett acabou se formando bacharel em Francês pela faculdade de Millsap e trabalhou como bancário, tendo vivido até os 89 anos. 

Triplett em 2016, foto por Yuval Levental


O autismo passou a ganhar maior reconhecimento somente em 1978, quando foi reconhecido pela organização mundial da saúde e constou no CID-9. Desde então, o diagnóstico de autismo tem se tornado cada vez mais frequente. No CID 10 o autismo infantil está sob o código F84.0, no mesmo código utilizado para transtornos globais do desenvolvimento (F84). Bastante associado está o F84.1, de autismo atípico. A classificação mais atual leva em conta o que está presente no DSM-V-TR (a revisão foi publicada em 2022), e leva em conta o nível de suporte que a pessoa com autismo precisa no seu dia-a-dia. 

Muitos estão preocupados com o aumento da incidência no diagnóstico de autismo. Realmente é um padrão que chama atenção. Sabemos que uma maior atenção aos critérios diagnósticos, por si só, já leva a um aumento nos diagnósticos. Mas será que há outros fatores envolvidos? Bom, como alguém fez no Twitter, talvez possamos fazer outra correlação:


Estariam os diagnósticos de autismo aumentando devido ao aumento da venda de alimentos orgânicos? Caso a nossa escolha seja por esse caminho, também vamos ter que admitir outra explicação para a mudança climática:



Sim, a queda no número de piratas desde o século 19 está relacionada com o aumento médio das temperaturas globais. Tudo bem. Todas essas são correlações espúrias. A verdade é que as causas no aumento total do diagnóstico de autismo ainda não são bem explicadas. Isso pode ter uma relação com a tendência dos casais de terem filhos com idades mais velhas, além de uma melhora drástica na sobrevivência de neonatos que ficam internados em unidades de terapia intensiva neonatal e posteriormente preenchem critérios diagnósticos para autismo, às vezes por alguma causa genética que também causou seu quadro inicial de saúde. 

Mas é certo que queremos entender melhor essa tendência. Eu mesmo irei pesquisar melhor e trarei novas informações se encontrar algo de interessante. Mas evitem cair em correlações espúrias. Nem tudo que pode ser correlacionado faz realmente sentido. 



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