Vinhos, ácidos orgânicos e o metabolismo humano
Ao experimentar um vinho fino, os aromas percebidos são decorrentes de uma variedade de compostos químicos que são produzidos durante o processo de prensagem da uva e fermentação do mosto resultante. As moléculas produzidas são de uma gama diversa de grupos orgânicos e são percebidas por receptores olfativos específicos. Neste momento, é possível que surja a associação entre os aromas no vinho e aromas geralmente reconhecidos em outros alimentos ou substâncias diversas.
Ocasionalmente, ocorre uma certa confusão sobre a descrição das notas presentes nos vinhos. Há uma certa confusão com a descrição de um vinho com notas de "frutas vermelhas", "tabaco" ou "chocolate". Algumas pessoas se questionam como esse aroma pode ser percebido se nada disso passou perto do vinho durante a sua fabricação. Ocorre que a presença desses compostos químicos pode trazer aromas que são associados com esses descritores.
Em decorrência disso, algumas pessoas podem conseguir ter uma percepção mais ampla dos aromas no vinho por apresentarem polimorfismos genéticos em genes codificantes de receptores olfativos (altamente variáveis) que permitem reconhecer mais aromas. Porém, muitas vezes, a percepção mais apurada é apenas fruto de treinamento do olfato e de uma atenção mais plena aos aromas: Dos alimentos, em geral, que podem servir como referência, e dos vinhos.
Os compostos que trazem esses aromas variam de monoterpenos (aroma mais floral), pirazinas (aroma mais herbal), isoprenoides (associados com aroma de frutas vermelhas ,muitas vezes), além de compostos sulfurados: tiois e mercaptanos, que trazem aroma que lembra alho ou cebola, e podem provocar uma experiência sensorial ruim quando presentes em excesso. Ao mesmo tempo, estes últimos compostos também podem ser importantes no aspecto sensorial de algumas variedades de uvas. Outro exemplo seriam compostos fenólicos, que muitas vezes surgem durante o envelhecimento do vinho em barricas. A vanilina, por exemplo, tem aroma de baunilha e está associada a barricas de carvalho.
Da mesma maneira, existem ácidos orgânicos que contribuem tanto para a acidez do vinho, quanto para o seu aroma. A contribuição pode ser indireta. Há ácidos orgânicos que contribuem para reações com outros compostos (como açúcares na forma de glicosídeos) que resultam em formas voláteis e aromáticas destes. A combinação dos ácidos orgânicos com o álcool do vinho cria ésteres que também podem trazer aromas à bebida.
Os ácidos orgânicos presentes no vinho poderão adentrar no metabolismo humano após o consumo da bebida e consequentemente passarem por diversas vias metabólicas. Em alguns casos, o metabolismo também depende de bactérias presentes no intestino. Ainda há compostos que surgem naturalmente durante o metabolismo humano que também estão presentes nos vinhos. Estes ácidos orgânicos podem ocasionalmente ser detectados em material biológico (como na urina) através de metodologias como a cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas.
Um recurso importante para saber mais sobre compostos que são parte do metabolismo humano é o site HMBD (Human metabolome database), que contem cartões (metabocards) com dados sobre metabólitos presentes no conjunto de substâncias que formam o metabolismo humano (o metaboloma).
O ácido málico, por exemplo, é um intermediário do ciclo de Krebs e pode estar presente em situações em que há dificuldade para a realização da fosforilação oxidativa, como em algumas doenças mitocondriais – geralmente em conjunto com outros ácidos relacionados: lático, succínico, fumárico, cítrico. No vinho, o ácido málico tem aroma que lembra maça verde, e geralmente é encontrado mais nos vinhos brancos.
O ácido lático é amplamente conhecido como produto do metabolismo humano (e bacteriano). De fato pode estar presente em condições metabólicas em que há alteração do metabolismo energético (como em muitas mitocondriopatias ou na glicogenose tipo Ia - doença de Von Gierke). O seu aroma geralmente é considerado mais leitoso - o que faz sentido, ao considerar que é o ácido predominante no iogurte.
O ácido acético é produzido por bactérias que convertem o etanol em "vinagre" quando o vinho é exposto ao oxigênio, e sua presença excessiva é considerada uma falha no vinho, podendo torná-lo bastante difícil de consumir. Ocasionalmente, o ácido acético está presente em excesso mesmo antes da garrafa ser aberta, e isso faz com que o vinho tenha um gosto avinagrado desde a sua primeira degustação. Essa pode ser uma hipótese em que um vinho é devolvido quando se faz o ritual de servir o vinho em um restaurante, por exemplo. É possível que tenha havido contato excessivo com o oxigênio após a fermentação, ou que a fermentação tenha ocorrido em temperaturas muito altas ou tenha ocorrido muito devagar.
O ácido acético é o segundo ácido carboxílico mais simples, e surge no metabolismo intermediário durante a formação de corpos cetônicos e no metabolismo da leucina, além de ser utilizado como substrato para a síntese de acetil-CoA. Não é comum, porém, que sua detecção seja utilizada na investigação de doenças metabólicas.
O ácido ascórbico é mais famoso. É a vitamina C. Apesar de estar presente nas uvas antes de seu amadurecimento, acaba sendo perdido durante esse processo. Pode ser adicionado nos vinhos durante o envasamento para funcionar como antioxidante. De certa forma, todos nós compartilhamos um metabolismo defeituoso da vitamina C: assim como os primatas, não temos a capacidade de sintetizá-la, mas muitos outros mamíferos sim.
A enzima responsável pela síntese da vitamina C é a L-Gulonolactona Oxidase. No ser humano, temos apenas um pseudogene (GULOP) no braço curto do cromossomo 8, com segmentos que correspondem a uma parte do gene encontrado nos roedores, com 5 de seus éxons faltando. Resquícios do processo evolutivo são comuns no nosso genoma. É provável que essa deleção (ou talvez mais de um evento do tipo) tenha ocorrido em algum momento bastante anterior ao surgimento do Homo Sapiens, visto que outros primatas não humanos também não têm uma cópia funcional do gene.
O ácido succínico é bastante comum nos vinhos e tem um aroma frutado. No ser humano, também é um metabólito frequente e importante: é formado durante o ciclo de Krebs e em seguida metabolizado em fumarato. Essa etapa da reação transfere também dois prótons (Ions H+) para a cadeia de transporte de elétrons. Também resulta do catabolismo do principal neurotransmissor inibitório: o ácido gama-aminobutírico (GABA) através de uma molécula que gera confusão nos alunos de bioquímica do primeiro semestre: Flavina Adenina Dinucleotídeo (FAD).
É mais comum encontrar o ácido succínico excretado em altas concentrações quando estamos diante de um defeito da enzima do ciclo de Krebs que metaboliza diretamente essa molécula: Succinato Desidrogenase, mas ela também pode aparecer como metabólito intermediário do ciclo de Krebs em outras condições que afetam o metabolismo energético, como nas doenças mitocondriais.
Como havia dito, existem diversas outras substâncias que trazem aromas específicos aos vinhos. Penso em fazer mais uma parte desse post para abordar melhor esse assunto (e quem sabe eu possa aprender mais sobre vinhos escrevendo isso). Mas ficaremos por aqui. Quem sabe vocês lembrarão de mim ao degustarem a próxima taça de vinho e perceberem uma acidez mais pronunciada ou um aroma específico. Até lá, um brinde.

Comentários
Postar um comentário